"Um olhar necessário", in Público, 28.05.07
"Na rua, são sobretudo as crianças que olham. "Mãe (é sempre mãe;
porque será?), porque é que aquela senhora usa aquele lenço?", "Mãe, o
que é que ela tem?", "O que lhe aconteceu?". Alguns adultos respondem
às perguntas das crianças. Outros, ainda, olham também. Há mesmo quem
chegue a virar a cabeça e a prolongar a mirada.
Suponho que é normal. Demasiado habituados a um país uniforme,
estranhamos o que nos arranha a superfície das expectativas. Já não
estranhamos o cego nem o aleijado a pedir - desses iludimos a
presença, desviando o olhar. Mas ainda olhamos quem fala ou parece
diferente, na cor, no aspecto ou no agir.
Primeiro tive medo, confesso. A cabeleireira, teimosamente guardada no
armário, olhava para mim, a insinuar: "Não precisas de passar por
isso. Podes parecer normal". Ainda cedi, algumas vezes. Mas era como
se outra que não eu me habitasse. Outra, saudável. Não eu, com cancro.
Depois decidi: "Não uso mais". E assim tem sido. Olhem, se quiserem.
Aliás, façam o favor de olhar. Porque eu estou aqui, neste espaço, com
o mesmo direito de aqui estar que antes tinha. E é bom que vejam que,
como eu, muitos outros diferem. Que a saúde, como a normalidade, é uma
ficção que só temporariamente habitamos. E que, a qualquer momento,
qualquer um de nós pode ser o temido rosto do "Outro".
Olhem para mim e vejam-me.
Não olharam. Não olharam a tempo, no caso da criança que foi forçada a
afastar-se da escola por ter cancro. E por não terem olhado a tempo,
às dores já sentidas juntaram outra dor. Não há desculpa para causar
dor a quem habita a dor mais funda de todas, a de poder perder um
filho. Ou para ferir quem é mais frágil, embora tenham muitas vezes
almas fortes, as frágeis crianças que povoam os corredores dos IPO.
É certo que não há nunca, nestas coisas, vilões e vítimas passivas.
Que as pessoas por vezes reagem intempestivamente a situações
"pequenas" (não sei se foi o caso, mas o que é "pequeno" face ao
sofrimento de uma criança e à impotência de quem a quer proteger?).
Mas também é certo que as coisas só chegam a este tipo de extremos
porque alguém que devia ter visto e agido não olhou e não o fez. Para
que serve uma escola, afinal, se não cuida dos mais fracos que lhe são
entregues?
São, já disse, as crianças as primeiras a olhar. Porque ainda não não
dominam a arte do subterfúgio, querem saber: "Mãe, porque é que aquela
senhora não tem cabelo?". São as crianças, como no caso daquela
escola, quem por vezes é mais cruel. Mas não é necessariamente assim.
Há alguns meses, a minha filha de quatro anos, chorou quando lhe disse
que ia ficar sem cabelo. E disse que tinha medo. Hoje chama-me com
ternura "Ruca" (o seu boneco favorito, também sem cabelo) e "mãe
carequinha" quando me quer gozar. Não foi difícil. Bastou não
contaminar o seu olhar com o nosso medo. Será pedir de mais a quem é
adulto?"
Carla Machado
segunda-feira, 28 de maio de 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Apreee...é mais difícil ler estas coisas quando são de alguém que conhecemos...
sem palavras...
:(
Enviar um comentário